INTRODUÇÃO
Gravidez intersticial (GI) refere-se a uma gestação implantada no segmento tubar que atravessa a parede uterina (do ostium à emergência do istmo) (1). Este segmento relativamente espesso tem maior capacidade de expansão até à ruptura, que pode ocorrer até às 7-16 semanas, com hemorragia catastrófica (2), sendo a forma de apresentação em 20-50% dos casos (1,3,4).
A localização peculiar pode confundir-se com intrauterina, atrasando o diagnóstico (5). Importa manter um alto índice de suspeição.
Representa 2-4% das gestações ectópicas, partilhando factores de risco, mas com uma taxa de mortalidade 7 vezes superior (2-2,5%) (2,6,7).
A ecografia de alta resolução e métodos sensíveis de quantificação da ß-hCG têm possibilitado diagnósticos mais precoces e terapêuticas conservadoras (médica ou cirúrgica) em vez da clássica ressecção cornual cuneiforme ou histerectomia.
CASO CLÍNICO
Primigesta de 35 anos com antecedentes de esterilidade primária com 10 anos de duração (factor tubar/endometriose e factor masculino/oligoastenoespermia); quistectomia de 3 endometriomas ováricos, salpingectomia bilateral e 4 tentativas mal sucedidas de procriação medicamente assistida (2FIV e 1ICSI). A gravidez actual resultou da transferência de 2 embriões (ICSI, óvulos de dadora).
É admitida às 5 semanas e 6 dias de gravidez, apresentando dor pélvica intensa, exacerbada à palpação abdominal e ao exame ginecológico, sem sinais de irritação peritoneal. O valor da ß-hCG foi de 18.696mU/ml. A ecografia transvaginal mostrou cavidade endometrial vazia; espessura endometrial de 6,4mm; saco gestacional, com 10mm, separado da cavidade, de localização excêntrica na vertente esquerda do fundo uterino, deformando o seu contorno, contendo ecos embrionários com 2,5mm e vesícula vitelina, apresentando vascularização “em anel de fogo” e sendo recoberto no terço supero-lateral, por miométrio com 2mm de espessura (Figuras 1,2 e3).
Perante o diagnóstico de gravidez intersticial, administraram-se 80mg de metotrexato, via intramuscular (D0), em regime de internamento. Em D7, a ß-hCG subiu para 26.041mUI/mL e administrou-se a segunda dose de metotrexato (80mg, intramuscular).
A doente manteve-se hemodinamicamente estável, com hemorragia vaginal escassa e dor moderada, sem evidência de ruptura, cumprindo o follow-up em ambulatório até “negativização” da ß-hCG em D42 (Figura 4). O aspecto ecográfico evoluiu para uma massa heterogénea com 33x38mm de tamanho.
DISCUSSÃO
O nosso diagnóstico foi mais precoce que habitualmente descrito (5semanas e 6dias versus 6,9-8 semanas) (1,7), eventualmente pelo índice de suspeição elevado pela história de salpingectomia e de técnica de PMA. A ecografia transvaginal foi decisiva. Timor-Tritsch 1992, relatam 90% de especificidade (40% de sensibilidade) para os seguintes critérios ecográficos: vacuidade uterina; massa/saco gestacional excêntrico, separado da cavidade endometrial e espessura miometrial <5mm recobrindo a massa gestacional (8).
Não existem protocolos de conduta consensuais e especifícos para GI, extrapolando-se frequentemente critérios definidos para a gravidez tubar distal. A ruptura, instabilidade hemodinâmica e incapacidade da cumprir o follow-up são contraindicações consensuais ao tratamento médico, sendo mais controversos o valor de ß-hCG e a actividade cardíaca fetal (9,10,11,12,13). A atitude expectante é desaconselhada, face aos riscos médicos, à imprevisibilidade da evolução e aos custos de longos períodos de follow-up (14).
Neste caso, apesar da ß-hCG >5000mUI/mL, o metotrexato sistémico foi a terapêutica escolhida, tendo em conta a insuspeição de ruptura, a pretensão de manter a fertilidade, excelente capacidade de cumprir o follow-up e preferência por um tratamento médico. A eficácia terapêutica foi conseguida num período de tempo vantajoso para a qualidade de vida da mulher e favoravelmente comparável ao intervalo temporal de 22-129 dias relatado na série de Tang et al (15). O regime de dose única foi preferido pela menor incidência de efeitos colaterais e comodidade posológica. A necessidade de duas administrações do fármaco poderá relacionar-se com o elevado valor de ß-hCG. Parecem ser aceitáveis até 4 administrações (14).
A raridade da entidade limita as amostras estudadas e disponíveis na literatura, mas há vários relatos da eficácia do metotrexato (15, 16, 17, 18, 19). Jeremy et al (16) descrevem o sucesso terapêutico em 16 de 17 casos, incluindo todos os casos (quatro) com actividade cardíaca fetal e sendo o valor médio de ß-hCG de 6452mUI/mL. Tang et al (15) também relatam eficácea em 10 de 11 casos, mesmo com vitalidade fetal e com valor máximo de ß-hCG de 106.634mUI/mL. A comparação entre regimes de dose múltipla e dose única (com eventual repetição da administração) na GI também requer investigação adicional, sendo variáveis os esquemas retratados na literatura.
CONCLUSÃO
Face à ausência de protocolos terapêuticos específicos desta entidade, o presente caso reforça o papel do tratamento médico em doentes seleccionadas (GI não rota, diagnosticada precocemente, em mulheres hemodinamicamente estáveis, complacentes com o follow-up) como uma opção segura, eficaz, que evita os significativos riscos cirúrgicos e favorece a preservação da fertilidade.
Algoritmos de actuação poderão ser orientações úteis, mas é desejável uma abordagem individualizada, considerando aspectos não apenas estritamente clínicos, mas também a adesão ao follow-up, a preferência da mulher e o seu desejo de preservar a fertilidade.